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A grande polêmica dos canais em Marte


O que levou astrônomos de renome a ver uma rede de alinhamentos em Marte sugerindo obra de uma civilização ? A aproximação de Marte este mês nos leva a recordar aquilo que podemos chamar da mais acirrada discussão científica que o mundo assistiu envolvendo astrônomos, cientistas, filósofos , escritores e jornalistas.

Desde sua existência nesse planeta, o homem não quer viver só. Odeia a solidão. Com o tempo, ampliou essa solidão para muito além da Terra, para os astros do universo.

E o melhor candidato revelou-se ser Marte, o Planeta Vermelho. A escolha era óbvia : a duração do dia muito parecido com o nosso (24h 37m 23s), também a inclinação de 24° 46’ do equador em relação a órbita (Terra : 23° 27’) determinando estações do ano , duas alvas calotas polares e ter satélites como a Terra. Isso motivou o inicio de uma polêmica centenária ,que começou na verdade aqui no Brasil com o astrônomo Emmanuel Liais ( 1826-1900) contratado por D. Pedro II para dirigir o Imperial Observatório do Rio de Janeiro. Ele argumentava que as manchas escuras vistas em Marte eram resultado da presença de vegetação. Contudo foi na grande aproximação de 1877 com o astrônomo italiano Giovanni Virginio Schiaparelli (1835-1910), então diretor do Observatório de Brera ,que um fato novo surgiria. Ele anunciou a descoberta de sulcos e acidentes retilíneos em sua superfície. Chamou as manchas escuras de “mares” e outras de “estreitos” e “canais”, este último indicando que poderia ser tanto uma configuração natural do terreno como uma construção artificial. O estopim estava aceso. Restava apenas outros astrônomos confirmarem os canais e encontrar os habitantes de Marte !

Como as calotas polares desaparecem quase por completo no verão marciano, para muitos estava claro que, para um relevo árido e desértico, esses canais eram obra de uma civilização agonizante que os construíram para, a partir dos pólos, irrigar o planeta. Enquanto o italiano limitou-se a relatar “canali” como interpretação puramente hipotética, Camille Flammarion (1842-1925) conclui com entusiasmo : “Essa rede singular de linhas retas, de milhares de quilômetros de comprimento só pode ser uma obra de arte ; prova a existência, em Marte, de criaturas racionais, de extraordinária capacidade produtiva e inteligência muito superior a nossa. Era difícil não se deixar envolver pelo fascínio que tal hipótese exercia. E, de fato, ela foi rapidamente adotada pela opinião pública.

A partir daí, rios de tinta e toneladas de papel foram consumidos contagiando escritores e astrônomos. Muitos não concordavam com essa teoria argumentando serem os traços retilíneos um alinhamento ilusório tendendo a geometrizar-se pela distância. Estava inaugurado o ciclo de acirrados debates entre canalistas x anticanalistas.

A idéia alimentada por Flammarion apaixona um milionário diplomata californiano, Percival Lowell (1855-1916) que resolve abandonar a carreira para construir em uma zona semi-desértica do Arizona, a 2.300 m de altitude, o Observatório Flagstaff, o seu “Castelo de Marte”, instalando uma grande luneta de 61 cm, fabricada por Alvan Clark (1832-1897). Ele dedicou sua fortuna e 15 anos de vida a esse projeto. Em 1895 em seu livro “Marte”, elabora um planisfério e atesta a presença de 184 canais ! Em 1896 ele escreve : “Marte era verdejante; hoje é um deserto. Os marcianos lutam contra essa fatalidade”. Em 1906 em seu livro “Marte e seus Canais” indica que eles haviam sido construídos por seres inteligentes formando uma extensa rede de distribuição. Finalmente surgiam nossos irmãos do espaço !

A obstinação de Lowell era explicável : no século XIX, os canais eram de importância crucial para o comércio internacional e o maior deles, o de Suez, constituía uma marca da inteligência humana. Se os humanos construíam essas obras monumentais, então não seria surpreendente que os marcianos fizessem o mesmo. Aqui mesmo no Brasil, guardada as devidas proporções, não estamos construindo um canal para levar água do rio São Francisco às regiões áridas do nordeste ?

Todavia a opinião de Lowell sobre Marte não encontrou respaldo aquela época com as observações feitas pelos astrônomos Edward Barnard (1857-1923) utilizando a grande luneta com objetiva de 89 cm do Observatório Lick, (doação do milionário californiano James Lick) em 1888 e em 1892 com John E. Mellisch utilizando a luneta com objetiva de 101,6 cm, a maior do mundo até hoje, do Observatório Yerkes, doada pelo milionário e homem de negócios de Chicago, C. T. Yerkes. Os dois astrônomos em aproximações favoráveis não conseguiram ver o que Lowell havia desenhado.

Decifrar àquela época os enigmas marcianos era extremamente difícil, uma vez que mesmo vendo-o mais próximo, não vemos melhor que a Lua a olho nu. Quem tentar enxergar alguma coisa na Lua a olho nu, compreenderá o problema de Marte.

Marte nas condições mais favoráveis e com os maiores telescópios, os “canais” se decompunham em granulações e traços irregulares, mostrando que os mesmos eram mero fenômeno de óptica. Foram pois os olhos os inventores da rede de canais.

Apesar da relutância de alguns em aceitar essas conclusões, a entrada em cena de telescópios cada vez maiores como os de Monte Wilson e Monte Palomar nos EUA, mostrava difícil a existência dos canais. Mas faltava o golpe final e ele veio com as sondas americanas Mariner 4 em 1965 e com as Mariner 6 e 7 em 1969. A primeira obteve 21 fotografias, a segunda 76 . Pela primeira vez mostraram enormes cones de extintos vulcões, um sem número de crateras de impacto e uma paisagem desértica. Dos canais e dos marcianos nem sinal ! Os anticanalistas venceram ! Estava encerrado finalmente um dos mais acirrados e calorosos debates na história da ciência.

Nelson Travnik é diretor do Observatório Astronômico de Piracicaba Elias Salum e Membro Titular da Sociedade Astronômica da França.

O Observatório de Piracicaba é parceiro do Clube Centauri e busca divulgar a Astronomia ao alcance de todos.

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